segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Ponta Delgada Capital Europeia da Cultura 20!!

Um conjunto significativo de municípios portugueses - Aveiro, Braga, Caldas da Rainha, Cascais, Coimbra, Évora, Guarda, Faro, Leiria, Oeiras, Viana do Castelo e Viseu - está (manifestamente) empenhado na corrida à organização da Capital Europeia da Cultura (em 2027, daqui a nove anos).

A maior parte destas cidades já consolidou uma equipa para preparar o seu projecto de candidatura, cujo desfecho será conhecido, após um intenso e criterioso processo de avaliação, até 2023.

Para melhor compreendermos as razões deste ímpeto nacional, reproduzo os objectivos específicos desta acção (Decisão nº 445/2014/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014): “Reforçar o alcance, a diversidade e a dimensão europeia da oferta cultural nas cidades, nomeadamente através da cooperação transnacional; Alargar o acesso e a participação na cultura; Reforçar a capacidade do setor cultural e as suas ligações a outros setores; Melhorar o perfil internacional das cidades através da cultura.”

Esta será a quarta vez que Portugal acolhe esta organização, depois de Lisboa (1994), Porto (2001) e Guimarães (2012). Apesar de todos os percalços (lusos) decorridos nas edições passadas, ninguém ignora os benefícios que advieram para a vida destas cidades.

Recupero este tema, na medida em que assisti (maio de 2015), incrédulo, reconheço, ao anúncio de intenção da cidade de Ponta Delgada concorrer a (esta) Capital Europeia da Cultura.

Passados três anos, pouco ou nada se sabe sobre este acto de fé. Desconhecemos a continuidade do processo, se apenas foi uma mera peça burocrática e ficou na gaveta, ou se, inclusivamente, nunca houve vontade, nem intenção em concretizar esta “meta” delineada no Plano Estratégico de Desenvolvimento de Ponta Delgada - 2014/2020.

Em fevereiro de 2016, no resgaste desta cronologia, a autarquia anunciou a instalação da Comissão Municipal de Cultura (chegou a existir?), sendo que convidou para presidir a este órgão o professor Carlos Cordeiro. Infelizmente, já falecido. E, desde esta data, nunca mais se ouviu falar sobre este assunto.

Este anúncio levou a que os agentes culturais da cidade (e da ilha) tivessem ficado expectantes quanto ao desenlace deste desígnio. Perante as evidências, a desacreditação é total.

Não podemos balizar a estratégia cultural para o município (e até para a região) em eventos (leia-se ‘inventos’) temporários. O evento passou a ser a força motriz da programação cultural.

Tudo carece de um carácter festivo para justificar a sua existência. A efemeridade tudo importa. A regularidade e a sedimentação de hábitos (de público e de acessibilidade) dá mais trabalho e tem menos visibilidade, se comparada com a profusão de partilhas, likes e notícias avulso.

Andamos inebriados com a possibilidade de algo acontecer mesmo que não saibamos, em concreto, ao que vamos.

A decisão da autarquia de Ponta Delgada em consubstanciar este objectivo foi realista, teremos capacidade de realização (e conteúdo artístico) para dar corpo e dimensão a um projeto com esta exigência?

Existiu ponderação ou até mesmo uma auscultação às restantes entidades públicas e regionais antes de sublinhar este “enorme esforço coletivo”?

Importa melhor conhecer o território onde habitamos para depois almejarmos ser mais do que aquilo que somos.

O tempo encarregou-se de nos dar a resposta.

* Publicado na edição de 19/11/18 do Açoriano Oriental
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segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Energia (uma mudança de paradigma)

As alterações climáticas estão no topo da agenda, não apenas pelo número crescente de fenómenos climáticos extremos mas, também, por aqueles que negam a existência do problema.

O modelo de desenvolvimento contemporâneo, assente no crescimento infinito da produção industrial e do consumo, é, como sabemos, insustentável.

O planeta já não produz, nem tem os recursos naturais disponíveis, para garantir as condições básicas para um conjunto significativo da população mundial.

Assistimos a uma clivagem cada vez maior entre ricos e pobres, com um aumento vertiginoso das tensões sociais, cujas repercussões têm, em muitos casos, um desfecho previsível (e violento).

Nos Açores, ano após ano, os efeitos das alterações climáticas fazem-se sentir com mais intensidade. Nesta medida, necessitamos aperfeiçoar o consumo e a produção da energia, reduzindo, substancialmente, a nossa dependência energética com o exterior.

Este é um dado incontornável, e deve ser assumido de forma transversal, consubstanciando a estratégia elencada pelo arquipélago, conducente à sua sustentabilidade ambiental e ao inerente equilíbrio com a actividade económica.

Seguindo este princípio, foi apresentado um documento com vista à discussão pública da Estratégia Açoriana para a Energia 2030.

Este documento reflecte um quadro conceptual, no qual a energia apresenta-se “como vetor essencial do desenvolvimento sustentável da Região Autónoma dos Açores e como fator de inovação social.”

Os sobrecustos energéticos numa região arquipelágica, como a nossa, são significativos, consumindo recursos (fundamentais) que podiam ser canalizados para outros sectores.

O caminho para a “descarbonização da economia” passará, forçosamente, por uma crescente racionalização, pela redução e eficiência do consumo, alicerçada nos recursos energéticos naturais (sol, vento, água e geotermia).

De igual modo, pretende-se que esta transição para a economia de baixo carbono possa constituir “uma oportunidade para o crescimento económico”, nomeadamente, pelo surgimento de novas empresas “na área das chamadas tecnologias limpas.”

No entanto, e por estes dias, o parlamento regional discute uma petição sobre a carga fiscal e a formulação do valor máximo de venda ao público do preço dos combustíveis nos Açores.

O que é curioso é que não se questione como é isto possível, de que modo é que o preço dos combustíveis no arquipélago é o mais baixo do país?

Este valor é mais baixo porque alguém, naturalmente, paga o diferencial, sendo que o preço não difere de ilha para ilha. No garante da coesão e da solidariedade regional, e para ninguém seja prejudicado face ao local onde habita, o preço praticado é idêntico para as nove ilhas. Uma posição inquestionável, parece-me.

Contudo, mais do que baixar o preço dos combustíveis devemos caminhar no sentido de reduzir o seu consumo e efectuarmos, na medida das nossas possibilidades, uma mudança de paradigma rumo à nossa autonomia energética. É isto que este documento, agora apresentado, pretende alcançar.

A título de exemplo, deixo-vos aqui esta questão: sabem quanto custa (fazer chegar) uma botija de gás ao Corvo?

Mais do que fazer (e saber) as contas, importa traçar uma linha de futuro e ter consciência de que temos, todos, neste processo, um papel a desempenhar.

* Publicado na edição de 05/11/18 do Açoriano Oriental
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quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Essencial/Acessório

Os açorianos têm um enorme orgulho na sua terra e no que é ‘nosso’ mas à primeira oportunidade são exímios (e implacáveis) em denegrir os seus conterrâneos (e o Destino).

O ressentimento é uma imagem de marca dos meios pequenos, nos quais as quezílias são motivo para alimentar a discórdia, a inveja e o(s) ódio(s).

Por estes dias, o populismo grassa. O diz que disse, as meias verdades e os comentários numa ‘timeline’ feita de oportunismos, passaram a ser a notícia do dia seguinte.

A distância que (supostamente) nos deve unir passou a ser o (principal) motivo para o (res)surgimento de uma proliferação de reivindicações, algumas a despropósito, outras porque sim, com intuído de alimentar a agenda politizada e a avidez noticiosa, feita de imediatismo, falta de rigor e, não raras vezes, ética.

Esta frase parece, e é, um cliché mas não me canso de a dizer: o mundo mudou (radicalmente) e não será pelo facto de estarmos distantes, de quase tudo, que acontecimentos longínquos não terão um (forte) impacto local.

Importa reter esta ideia. Isto porque, em múltiplas circunstâncias, ao acompanhar o posicionamento de determinados decisores e líderes de opinião, fico com a impressão que permanecem presos a uma região assente em pressupostos desenquadrados, num tempo marcado por uma economia transnacional, existindo, inevitavelmente, um desfasamento no entendimento entre o que realmente se passa e aquilo que ambicionam para o arquipélago.

Não podemos ignorar que uma parte significativa das decisões que implicam (directamente) com a nossa vida em comunidade são tomadas noutros centros de decisão (que não na Horta ou em Lisboa).

Os Açores constituem hoje, como um ontem, um mar de oportunidades. Mas não podemos ficar sentados à espera que algo aconteça ou que o governo assuma (por inteiro) a liderança da iniciativa.

Temos de congregar um conjunto de vontades no devir do investimento colectivo. Para tal, é imperioso sair da nossa bolha (outro cliché, eu sei).

Neste estado de aparente esquizofrenia, no qual, por um lado, o governo é acusado de (ter) um peso muito grande na economia regional, por outro, quando anuncia a redução da sua participação no sector público empresarial, surgem vozes a (re)clamar a necessidade de continuidade dessa presença.

A mesma participação pública que antes era acusada de ser omnipresente, incompetente e despesista, passa, a posteriori, a fundamental e necessária.

Neste ponto, gostaria de frisar que existem decisões (nas empresas públicas) que não são compagináveis com o racional económico. Tal não significa que estas não devam (nem possam) ser bem geridas. A prossecução de algumas acções implica (tão somente) a solidariedade insular que consubstancia o cerne daquilo que define a (nossa) Autonomia.

Posições como as que, esta semana, se fizeram ouvir, nomeadamente, sobre o facto de associarmos a SATA à promoção dos Açores, em que tal poderá “prejudicar o turismo na Região”, são, na sua essência, lamentáveis e um bom (mau) exemplo do quão disfuncional, e paradoxal, significa governar um arquipélago como este.

Isto na (exacta) medida em que, para além dos naturais desafios que se nos colocam, há que (sempre) contar com inúmeras entropias e interesses particulares que, em muitos casos, se sobrepõem ao bem comum.

Daí que, e acima do ruído (das redes), convém destrinçar (no defesa do interesse público) aquilo que é essencial do que é acessório.

* Publicado na edição de 22/10/18 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Primeiro (estão) as pessoas

Neste início de outubro, parece-me oportuno reflectir sobre a profusa animação turística estival, vendida como tradição e mascarada de modernidade (pelo upgrade a festival com DJ incluído).

Uma parte significativa dos municípios dos Açores não consigna o que deve à componente cultural (cultura não é sinónimo de desporto) e não planifica a sua agenda com a devida antecedência. A maioria das iniciativas está concentrada no verão, na transmutação e amplificação das festas religiosas e do feriado municipal, num modelo que poucas alterações conhece e cuja implementação é orçada em ‘copy paste’.

Existem, sempre, excepções mas não se compreende porque é que negligenciamos a imperiosa articulação entre entidades, sejam elas privadas, municipais e/ou governamentais.

Continuamos a agir sem olhar aos interesses de quem nos visita, assumindo que vão comer e vão gostar. Quem procura os Açores (e quem tem amor por estas ilhas) não quer ser surpreendido com a realização de uma festa nas margens da Lagoa das Sete Cidades, num local que diz ser ‘nature friendly’ e cuja promoção assenta no (melhor) equilíbrio entre o homem e a natureza.

Com isto não estou a defender o fim deste tipo de iniciativas, devem ter, como espero que tenham, um enquadramento próprio e, compreensivelmente, não podem ser realizadas em qualquer lugar.

Contrariamente ao que é difundido (anualmente, por exemplo, na BTL, pelas mais diversas entidades), o programa de animação turística do arquipélago apenas responde ao consumo interno, pelo que assumir que se está a promover um cartaz de índole internacional é desconhecer, de forma grosseira, a agenda cultural dos países (e cidades) de origem da maioria dos nossos visitantes.

Outro aspecto que importa clarificar, e que é dado a equívocos, é confundir animação turística com criação artística.

Ambos os universos devem coexistir e trabalhar de forma articulada, algo que, tendencialmente, não acontece apesar da nossa reduzida escala.

Este assunto é entendido, por muito boa gente, como não prioritário, mas não podemos afirmar que, culturalmente, somos X, Y e Z quando, estrategicamente, não se investe, consubstancialmente, na preservação e difusão do riquíssimo património que afirmarmos ter, seja ele ambiental, patrimonial ou religioso. Assim como, no apoio ao funcionamento regular dos agentes e criadores regionais.

Os objectivos de um legítimo empresário na promoção de uma festa/festival, não serão exactamente os mesmos de quem produz uma exposição de fotografia ou dirige uma orquestra/filarmónica. O valor económico inerente a cada uma destas actividades pressupõe um apoio, e um olhar, diferenciado pelas entidades que as tutelam (e acompanham).

A dimensão cultural exige uma atenção particular que não pode ser balizada pelo incremento turístico, pois, em primeira instância, estão, espero eu, os que aqui residem e querem trabalhar.

Também, aqui, deve existir uma clara definição de quem apoia o quê, nomeadamente, na reciprocidade deste diálogo entre turismo e cultura.

Primeiro estão as pessoas, o resto vem depois.

* Publicado na edição de 08/10/18 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

(Por) uma sociedade mais justa

O auditório da Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada foi palco para o seminário “Cultura Acessível e Inclusiva” promovido pela Direcção Regional da Cultura, cujo objectivo teve por base o incentivo e o apoio dos agentes culturais, públicos e privados, na promoção de uma cultura inclusiva e acessível, através do intercâmbio de experiências e da partilha de boas-práticas.

Este encontro teve o mérito de colocar à discussão as barreiras no acesso à cultura que não são, apenas, físicas, na medida em que extravasam largamente a componente estrutural.

Apesar do progresso evidenciado nas últimas décadas, persistem, entre nós, muros invisíveis que dificultam e impedem o acesso, de diferentes públicos, aos espaços culturais.

Independentemente disso, existe uma crescente sensibilização das instituições culturais para a necessidade de ultrapassar estes impedimentos, os quais se situam, na sua maior parte, ao nível social, cultural e, inclusive, comunicacional.

Um espaço cultural não pode negligenciar o território onde se encontra, deve contribuir activamente para a qualificação da comunidade, na mitigação de factores de discriminação e marginalização que, ainda, subsistem.

A igualdade de oportunidades na acessibilidade aos espaços, e conteúdos, exige um grande trabalho de equipa, na dinamização e na renovação das actividades, sendo que, em muitas situações, nem sempre é fácil chegar a estes públicos.

O capital cultural define a forma como, cada um de nós, se posiciona perante um determinado activo cultural, seja ele, um livro, um concerto ou uma (aparente e simples) ida ao museu.

Importa ter presente que a interação com estes objectos, e manifestações culturais, não se processa da mesma maneira e não se faz por injecção mas, sim, por contaminação. E isto só se consegue com a criação de hábitos (fruição e acesso), com a introdução de uma regularidade e estabilidade na acção programática dos espaços culturais e na intensificação da mediação com os seus vários públicos.

E para que isto possa acontecer de forma mais evidente, é necessário comunicar com mais assertividade, e clareza, tornar simples o acesso ao que não conhecemos por um processo de simplificação (sem que seja entendido como algo redutor), descomplicando aquilo que pode ser entendido como intangível.

O trabalho de proximidade, de especialização e para diferentes nichos de público, é algo que deve ser entendido como fundamental para a inclusão pelas artes, sobretudo, em comunidades onde existem múltiplas assimetrias.

Os Açores são um espaço de cultura, como uma matriz identitária fortíssima e com um apego ancestral pelas suas tradições. Não obstante este cariz, não podemos ficar ancorados ao passado.

A nossa educação passa, inexoravelmente, por conhecermos quem nos antecedeu, sendo que "o verdadeiro objectivo do estudo da História não é recordarmos o passado, mas libertarmo-nos dele" (Yuval Noah Harari). E, nesta medida, devemos atender ao presente e perspectivar o futuro.

Para tal importa ressalvar o investimento continuado (e reforçado) na educação e na cultura, como elemento fundamental para a construção de uma sociedade mais justa.

P.S. - Face à (recente) mudança de protagonistas na Direcção Regional da Cultura, um justo reconhecimento ao trabalho desenvolvido pelo arquitecto Nuno Ribeiro Lopes e um voto de confiança para a sua sucessora, a professora Susana Goulart Costa.


* Publicado na edição de 24/09/18 do Açoriano Oriental
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terça-feira, 11 de setembro de 2018

Dar espaço (ao tempo que nos falta)

Nesta(s) ilha(s), o alvoroço provocado pelo crescimento turístico passou a ser o denominador comum de quase todas as conversas, de parte substantiva da acção política e da dinâmica empresarial.

Tudo parece gravitar em torno do turismo, dos seus benefícios, dos (designados) malefícios e da dificuldade que é (ou passou a ser) alugar casa, estacionar ou reservar um restaurante que antes estava vazio (e à nossa espera).

Esta onda de choque não se faz sentir de forma idêntica por todas as ilhas, nem tal seria possível, a começar, como sabemos, pela natureza e dimensão de cada uma delas.

Pese embora esta (óbvia) constatação, há quem considere que este é (apenas e quase sempre) um problema de transportes ou da (in)competência de determinado decisor político.

Na resposta a uma explicação plausível, assistimos, não raras vezes, a uma exigência irrealista para depois surgir a reivindicação (surrealista), sobretudo, junto do governo regional, a exigir a gestão rigorosa dos recursos públicos (no qual se incluem a multiplicidade de serviços públicos que existem e que são necessários à manutenção da coesão social do arquipélago).

A Sata, os transportes marítimos e a saúde são alguns dos maiores exemplos da coesão regional, cujo desempenho é fundamental para garantir a união em torno do projecto autonómico.

A crítica pela crítica, escudada na amplificação de casos particulares, faz denegrir e perigar a existência de empresas e profissionais (fundamentais ao garante ao nosso bem-estar colectivo). E que, na maior partes das situações, é alimentada para fazer face à sobrevivência política de alguns protagonistas, cujo maior contributo consiste em destruir e, não, em construir.

A gestão da coisa pública nem sempre é compaginável com um tempo marcado pela urgência, pelo imediato e pela aceleração, no qual vivemos fascinados pelo fim e pela catástrofe (António Guerreiro).

A actuação política não deve mas é, recorrentemente, ditada pela lógica da reacção e do desagrado promovido, e amplificado, pela irracionalidade que, hoje, vigora nas redes sociais.

Não devemos, nem podemos ignorá-las, temos é, sim, de destrinçar o que é relevante, daquilo que possa ser efabulado.

Apesar de assumirmos que estávamos preparados para a intensificação da actividade turística, nada, nem ninguém, previu a magnitude do impacto do crescimento exponencial que estamos a experienciar.

Da mesma maneira que não devemos entrar em euforias desmedidas, temos de ter consciência que subsistem inúmeros constrangimentos no incremento deste sector, os quais não têm, na maior parte deles, uma resposta imediata.

Neste capítulo, como em tantos outros, o governo é um parceiro, não tem todas as respostas, nem pode ser o catalisador de toda a iniciativa.

Contudo, a “política não tem tempo e tudo aquilo que precisa de tempo encontra hoje imensas dificuldades para subsistir” (António Guerreiro).

Importa dar espaço (ao tempo que nos falta), para o diálogo, reflexão e acção na implementação (responsável e consciente) do projecto de sustentabilidade que se pretende para o destino Açores.


* Publicado na edição de 10/09/18 do Açoriano Oriental
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terça-feira, 14 de agosto de 2018

A ilha (não) é nossa

O incremento da actividade turística tem provocado alguns constrangimentos no nosso modo de vida e tem conduzido a alguns aspectos menos positivos na vida dos insulares.

À semelhança do que acontece com outros destinos turísticos, existem, inevitavelmente, dores de crescimento face à crescente intensificação do número de visitantes, do aumento dos empreendimentos e investimentos de apoio ao alojamento e à animação turística.

Perante o congestionamento no acesso a determinados pontos de atracção turística, multiplicam-se as reacções negativas face ao aumento do fluxo turístico.

Ninguém ignora o efeito multiplicador da actividade turística na economia regional, os proveitos do turismo são muito bem-vindos mas para alguns (intervenientes) podíamos, quiçá, dispensar a presença dos turistas.

Passamos anos a reclamar por mais e melhores turistas, agora que eles aí estão, achamos que são demasiados?

Apesar de andarmos sempre a reivindicar a promoção do destino, foram poucos os que acreditaram no resultado desse investimento e na liberalização do espaço aéreo dos Açores.

A maior parte não estava preparada para o aumento exponencial do turismo, nem para as exigências daí decorrentes.

Nas últimas semanas têm surgido algumas notícias que dão conta da relativa insatisfação, por parte da população residente, face ao aumento dos preços (e ao anúncio de outros) no acesso a alguns pontos turísticos de maior afluência, como a Poça da Beija, nas Furnas, a Caldeira Velha, na Ribeira Grande, ou na Ferraria.

Passados três anos não me parece razoável continuarmos à espera dos meses mais intensos para realizamos obras de manutenção, sem adaptar horários de funcionamento e a evitar implementar medidas de regulação no acesso a espaços ambientais sensíveis, nomeadamente, no acesso automóvel, por exemplo, às margens da lagoa das Sete Cidades.

A justificação para a introdução desta regulação não pode, apenas, advir do facto de agora existirem mais turistas e (milhares de) carros em circulação pela ilha, são medidas em prol da nossa (proclamada) qualidade de vida e no melhor usufruto destes locais, naquilo que consideramos ser o equilíbrio entre desenvolvimento e o ambiente: o nosso maior activo.

Não podemos negligenciar a pressão exercida nestes locais, a qual é agora (muito) maior daquela que já tinham, pelo que sem a necessária implementação de regras que possam minimizar o número de acessos será difícil garantirmos a melhor experiência (turística).

E como de resto acontece, um pouco por todo o mundo, os locais de visitação devem ser pagos e uma parte destas receitas deve ser investida na sua manutenção, conservação e monotorização.

Com isto não estou a excluir os locais, devem ser gerados acessos diferenciados para residentes e visitantes, os quais devem reflectir a pressão das épocas de maior procura, por aquelas onde a procura é menos intensa.

A afirmação dos Açores como destino turístico passa, inexoravelmente, pela forma como acolhemos aqueles que nos visitam, sem que nos tornemos, num local asséptico, indiferenciado e individualista.

Parece-me ingénuo e irresponsável assumir que poderíamos ter mais turismo sem que existisse alguma perturbação na vida da ilha, sendo que, como aqui já escrevi, o verdadeiro desenvolvimento económico só terá significado se todas as acções promocionais reverterem, efectivamente, para uma melhoria sustentada da população residente, em termos sociais, culturais e ambientais.

Parafraseando Jack Self (in Revista Electra, junho 2018), “a relação entre o que é da ordem da esfera pública e o que é da ordem da privacidade alterou-se completamente no nosso tempo, à imagem do que se passa na relação entre o indivíduo e a sociedade.”

A ilha não é nossa, nem nunca o foi.


* Publicado na edição de 13/08/18 do Açoriano Oriental
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terça-feira, 31 de julho de 2018

A tingir a ilha de castanho

As alterações climáticas são hoje uma certeza, é impossível ignorá-lo, embora há quem considere que se trate de mais um devaneio de alguns ambientalistas (leia-se fundamentalistas).

Os Açores são um pequeno laboratório para o quão drástico podem constituir-se estas mudanças no nosso modo de vida e frágil ecossistema.

Os exemplos (e as tragédias naturais) falam por si.

Assistimos de forma (surpreendentemente) célere a súbitas transformações da paisagem e do clima, quando a discussão sobre as alterações climáticas parece ser (ainda) algo muito distante.

Mas não é. É um problema do presente que pode, sim, alterar significativamente a vida futura neste conjunto de ilhas.

A recente crise económica fez abandonar (ou atrasar) um conjunto de projectos associados à produção de energia com base em fontes renováveis e um conjunto de boas práticas, com vista a alcançarmos o que hoje se designa por desenvolvimento sustentável.

A falta de planeamento (e/ou desrespeito pelo já existente) e a enorme pressão exercida em torno da nossa geografia tem conduzido a múltiplos desequilíbrios, dos quais alguns resultaram na perda de vidas e em custos materiais significativos.

Num período de crescimento económico, como aquele que hoje experienciamos, ninguém questiona se temos capacidade para multiplicar o número de licenciamentos de novas habitações, hotéis e outras tipologias.

Ao incremento do consumo de recursos naturais, nomeadamente, água, e ao aumento exponencial da produção de resíduos sólidos e urbanos, de residentes e de turistas, associado ao normal desempenho da indústria, da agricultura e da pecuária, será que estaremos todos conscientes do impacto que todas estas actividades têm nos recursos disponíveis? Sabemos o limite para a pressão que podemos exercer sobre estes mesmos recursos?

Nos Açores, a natureza é exuberante e tem uma capacidade incrível de regeneração, tendo em conta os sucessivos atentados de que tem sido alvo. Mas até quando?

As estações do ano deixaram de ser constantes e previsíveis, sendo que verão e inverno são, muitas das vezes, coincidentes e prolongam-se para além da barreira temporal.

O clima das ilhas é, por regra, temperado mas está diferente, com clivagens mais acentuadas e extremas, em que após um período de chuva intensa, sucede-se, de forma alternada, um período de seca.

A abundância da água entre nós (pelo menos em São Miguel, noutras ilhas do arquipélago esta situação não se verifica) faz com que nos tivéssemos habituado à sua presença e a conviver, de forma mais ou menos normal, com o seu desperdício.

Em anos, como este, em que a escassez de água faz tingir a ilha (verde) de castanho, seria bom questionarmo-nos sobre aquilo que temos de fazer para reduzir o consumo, evitar o gasto desnecessário e procurar outras soluções para o armazenamento de água, sobretudo, naquela que é necessária para abastecer a pecuária (na medida em que, por exemplo, cada vaca consome, em média, entre 100 a 130 litros de água por dia) - informaçãos obtida em várias fontes 1 / 2 / 3.

O Programa Regional para as Alterações Climáticas (PRAC) não dará todas as respostas e será, inevitavelmente, ineficiente, se cada um de nós não cumprir com a parte que lhe compete.

É tempo de deixarmo-nos de lamuriar por aí e passarmos a agir de forma responsável, individual e colectivamente.


* Publicado na edição de 30/07/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 11 de julho de 2018

Um caminho de futuro

O festival Walk & Talk (W&T) acontece há oito edições e este ano decorre, em São Miguel, entre 29 Junho e 14 Julho.

Para quem está mais atento, e tem acompanhado a trajectória deste projecto, o W&T está diferente e pouco, ou nada, tem a ver com aquele que se deu a conhecer de início, o qual preconizava a criação de um “museu a céu aberto” (com recurso a grandes murais), ideia que rapidamente abandonou mas que ainda perdura na memória de muitos.

Esta questão é pertinente, na medida em que o festival cresceu, diversificando e alargando o seu espectro e a sua acção, acompanhando, paralelamente, o desenvolvimento que a ilha, também, evidencia. E, tal como o arquipélago, deu-se a conhecer ao mundo. Não sei se podemos falar de maturidade, esta leitura pode parecer paternalista, e desnecessária, mas o reconhecimento obtido com a atribuição de um apoio da Direção-Geral das Artes, no primeiro ano em que os agentes culturais das regiões autónomas conseguiram concorrer, confere-lhe uma maior responsabilidade, rumo a uma crescente, e necessária, profissionalização do tecido artístico/criativo regional.

Não obstante as recentes conquistas, e todo o trabalho evidenciado até aqui, considero que os objectivos a que o festival se propôs, e propõe, só farão pleno sentido na construção de uma dinâmica consistente e sustentada da actividade cultural e criativa na(s) ilha(s).

Este será, talvez, parte de um longo processo.

Num espaço geográfico circunscrito, por natureza, conservador nas atitudes e nas opiniões, a ingenuidade e irreverência (iniciais) foram importantes para a sua afirmação. O W&T colocou os Açores no mapa (e no roteiro) da criação contemporânea, uma conquista que ninguém ignora.

Contudo, considero fundamental que o W&T abandone o (seu) carácter efémero, na medida em que existem mais Açores para além do período em que o festival ocorre.

A criação de hábitos de fruição e de visitação a espaços e a locais de cultura é, ainda, entre nós, um desafio. Importa pois, por isso, que o festival expanda a sua presença ao longo do ano, combatendo uma aparente guetização, cuja repercussão não pode ficar circunscrita às redes sociais e à imprensa, sabendo (sempre) à partida que estaremos a falar de um público restrito. Convém não ignorarmos este dado, sendo que não há nenhum problema com isso.

A importância de tornar acessível o contacto com a criação e com os criadores contemporâneos, nacionais e internacionais, junto de um público menos familiarizado com um conjunto de linguagens, conceitos e temáticas que, habitualmente, não fazem parte do discurso cultural do arquipélago, torna-o especial.

Afirmar a importância da cultura, como parte integrante da formação e da educação desta comunidade, pela introdução à contemporaneidade com recurso às artes, é um caminho de futuro, que fará, acredito e espero, toda a diferença.

A bem da(s) ilha(s).

* Publicado na edição de 09/07/18 do Açoriano Oriental
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terça-feira, 3 de julho de 2018

Destempo

A existência de um plano (desenvolvimento estratégico; director municipal ou marketing), concreto e objectivo quanto às decisões que afectam o nosso futuro colectivo, constitui um importante instrumento de gestão na assumpção do compromisso público para com a comunidade e o território a intervir.

Infelizmente nem sempre é assim e, demasiadas vezes, somos confrontados com resoluções que enfermam de uma visão de curto prazo, de contornos pouco claros, na resposta a um anseio populista, local, ou corporativo, o qual, na maioria das situações, não resulta de uma planificação integrada (ou sustentada).

Por estes dias contestar algumas opções de investimento, significa assumir uma posição minoritária face ao que é entendido como um desígnio comum e a necessidade (inadiável) de concretizar as reivindicações de determinada população, município ou ilha.

A democracia não é uma via de sentido único, exige reciprocidade, importa, por isso, que os diferentes interlocutores, em particular, os representantes eleitos, a saibam interpretar e a façam cumprir.

De igual modo, não basta exigir aos outros, nem vale desresponsabilizarmo-nos de cumprir com a nossa acção cívica, delegando-a em terceiros, apontando o dedo aos suspeitos do costume, numa interminável ladainha miserabilista, apanágio destes dias da indignação em tempo real.

Ao contrário do que se possa pensar, existem um número significativo de mecanismos públicos e privados que dão respostas a questões de governança.

Na maioria das vezes não nos socorremos delas, por desconhecimento ou por desleixo ou, muito simplesmente, porque afirmamos não nos interessar por política, na esperança que outros o façam por nós.

A história encarrega-se de demonstrar que sempre procurarmos justificar a nossa incapacidade, ou insucesso, com um bode expiatório, seja ele o árbitro ou a comissão europeia, ou, ainda, na vã tentativa de elencar uma figura messiânica que nos guie, novamente, para no esforço mínimo, obter a renda máxima.

Nestas últimas semanas muito se tem falado da forte probabilidade de existirem cortes nos apoios comunitários, nos quais os Açores seriam, também, naturalmente, afectados.

Contudo, e contrariando as (minhas) expectativas, o Comissário Europeu da Agricultura e do Desenvolvimento Rural em visita ao Presidente do Governo afirmou que, afinal, não haveriam cortes no programa POSEI, no âmbito do próximo quadro financeiro plurianual para o período 2021-2027.

A notícia não podia ser melhor. Não obstante, o lamento manteve-se de forma transversal, pois a intenção é que os apoios fossem aumentados (!). Observei alguns dos comentários com relativa incredulidade, se os apoios tivessem sido reduzidos: estaríamos preparados, que soluções existiriam?

Esperei que durante este período se desse início a uma ampla reflexão quanto às mudanças em curso no seio da União Europeia. Tal não veio a acontecer, no sentido de avançarmos com soluções ou planos alternativos para que se sejam previstos projectos de diversificação agrícola que possam, eventualmente, compensar, ou minimizar, futuras quebras de financiamento comunitário.

Esta parece-me ser uma questão inevitável, tal como o impacto (futuro) das alterações climáticas no nosso modo de vida.

Nesta situação, como em outras, a prevenção será, sempre, mais conveniente do que uma (re)acção a destempo.

* Publicado na edição de 02/07/18 do Açoriano Oriental
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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Pensar a Cultura d(n)os Açores

Esta semana partilho a (minha) leitura a três perguntas sobre o desafio “Pensar a Cultura d(n)os Açores”, inscrito no número 7 da “CulturAçores - Revista de Cultura” da responsabilidade da Direção Regional da Cultura.

Como avalia a produção/criação cultural em ilhas como os Açores?
Os Açores estão distantes dos grandes centros urbanos, onde, habitualmente, está centrada a dita efervescência criativa e a plena cobertura mediática daquilo que é novo. Isto não é forçosamente mau. Considero que esta questão, hoje, deixou de ser um problema. Na avidez da procura pelo que é diferente, distante e exótico, os Açores podem posicionar-se como um centro fora do centro e ser, ou estar, simultaneamente, no centro, que não apenas o geográfico. Na Cultura, como no resto, temos de olhar os Açores como uma realidade a diferentes velocidades, com múltiplas personalidades e geografias. Ao contrário daquilo que é percepcionado, daqui resultará uma das suas maiores riquezas. O alicerce da idiossincrasia açoriana garante uma riqueza identitária, patrimonial e cultural muito diversa e, por essa via, muito interessante.

Que desafios se colocam à relação tradição/modernidade no desenvolvimento da cultura da região?
As últimas décadas dotaram as ilhas de espaços de fruição e de criação propícios ao melhor desenvolvimento da produção e da criação cultural. Simultaneamente, vimos regressar ao arquipélago um conjunto de profissionais em diversas áreas de especialização que antes não existiam e que procura uma base sólida para desenvolver a sua actividade. Acredito que o futuro passa, inexoravelmente, pela criação de um percurso profissionalizante para as instituições/criadores regionais e por garantir a circulação e a distribuição, dentro e fora de portas, dos objectos criados. Fazer crescer cultural e socialmente uma comunidade requer investimento e continuidade num trabalho em parceria, na partilha e na prossecução de objectivos comuns. Os desafios são mais que muitos. É essencial pensar a cultura como um factor de desenvolvimento estratégico e não como um adorno.

O que é e deve ser a cultura açoriana?
Tenho alguma dificuldade em responder a esta questão, na medida em que não gosto de definir um caixilho (ou espartilho) ao que comummente se entende por “cultura açoriana”. Os traços distintivos das nossas tradições são incontestáveis. E isso deveria ser suficiente, sem outros justificativos. As nossas influências são, hoje, globais, pelo que não faz sentido que a cultura sirva como elemento identitário ou reactivo ao elemento contemporâneo, num tempo de transnacionalidade e de hiper-realidade. A cultura não é um elemento estanque, evolui. Não alimento a natural menorização do palco arquipelágico, nem a depreciação do que se faz entre portas. A geografia das ilhas passou a ser a que nós lhe quisermos conferir.

* Publicado na edição de 11/06/18 do Açoriano Oriental
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quinta-feira, 24 de maio de 2018

Geografia(s) da(s) Ilha(s)

Em Dia dos Açores, as páginas dos jornais são preenchidas por textos laudatórios e discursos efusivos sobre o que é ser ilhéu e açoriano.

Este é o dia maior da açorianidade, a segunda-feira do Espírito Santo, naquela que é percepcionada como a maior festividade do povo açoriano.

Nada tenho a opor à exaltação dos nossos traços distintivos mas tenho a sensação, na maior parte das vezes, que sobrevalorizamos (deliberadamente) o nosso lugar (e a nossa posição).

A comunidade açoriana (espalhada pelo mundo) é hoje maior do que aquela que por cá reside. E apesar de ter sido forçada a sair, muita dela continua agarrada à ilha que os viu partir, sendo que, paradoxalmente, muitos dos que cá estão, amam as ilhas, mas sonham em sair.

Esta dinâmica é reiterada e manifesta-se de forma antagónica, na medida em que a nossa acção no território não é condizente com a veemência com que o defendemos noutras ocasiões.

O (recente) crescimento económico no arquipélago tem levado ao esgrimir de argumentos entre ilhas, em que assistimos, passivamente, ao ressuscitar de velhos fantasmas bairristas, em que a ilha vizinha é (quase sempre) a causa das carências internas (de cada uma).

Como se isto não fosse suficiente, grande parte das reivindicações (de ilha) passaram a ter expressão em nome próprio, com representantes eleitos para o todo arquipelágico mas que apenas se focam em questiúnculas e interesses locais, como se pudéssemos viver uns sem os outros.

A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores passou a ser palco privilegiado para atestar o clima de crispação entre ilhas, em que o absurdo passou a ser defendido, incondicionalmente, como a única forma de suporte à acção política.

A atestar este estado de coisas, na última sessão plenária, o processo e a aprovação da lista de agraciados foi apenas mais um momento para a diatribe partidária, em que uma parte dos tribunos aparentou estar mais preocupada em defender a sua cota de participação do que em enaltecer aqueles que, por uma razão ou por outra, se destacaram e contribuíram para o (nosso) desígnio comum.

Parece-me que, infelizmente, alguns dos eleitos anda mais focada em defender o que lhes diz (directamente) respeito, desfasadamente, talvez, do que importa à maioria dos açorianos.

Seria mais produtivo que, ao invés de andarmos à procura da polémica estéril e do protesto fútil, existisse uma efectiva vontade em debater (seriamente) o futuro dos Açores (como um todo).

No rigor da incerteza destes dias, os Açores têm muitos desafios no alcance da sua trajectória e que passam, indubitavelmente, pelo garante da sustentabilidade ambiental, energética e social. Mas não vamos lá com um argumentário inflamado (e isolacionista), nem com uma retórica romântica envolta na bruma.

De igual modo, não faz sentido replicar o modelo das ilhas maiores, disseminando-o pelas mais pequenas. A nossa escala não o permite. Querer mitigar a descontinuidade geográfica através de propostas insustentáveis e irrealistas só nos conduzirá a um beco sem saída.

Sem preconceitos, e com toda a frontalidade, é necessário investir (indelevelmente) no conhecimento, na educação e na cultura, como forma de ultrapassar o atraso que (ainda) subsiste em algumas franjas e geografias das ilhas.

Celebrar este dia implica, primeiro, compreender (e conhecer) quantos Açores cabem, efectivamente, na palavra Açores.

* Publicado na edição de 14/05/18 do Açoriano Oriental
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quinta-feira, 17 de maio de 2018

#aculpaedogoverno

Ano após ano, a tradição renova-se e a imundice marca lugar.

Todos os anos alimento esta crónica com a minha estupefacção perante a maré selvática que atropela o espaço público em dia de festa.

Este ano não foi excepção, ficando a prova que é necessário, por todas as razões e mais algumas, rever a componente profana associada às Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres.

Os Açores são reconhecidos internacionalmente pelas suas práticas ambientais e, de momento, estão a tentar implementar um ambicioso plano associado à sustentabilidade, consubstanciado através de uma candidatura à certificação de destino de turismo sustentável, sendo o primeiro arquipélago do mundo a almejar (de)ter este selo do Conselho Global de Turismo Sustentável (Global Sustainable Tourism Council - GSTC), organismo que integra várias entidades das Nações Unidas.

Como foi possível testemunhar, e vivenciar, este desígnio não é compaginável com a organização do espaço público do local da festa e da zona (da cidade) limítrofe às festividades, no que concerne à limpeza, à disposição dos espaços de restauração, de venda ambulante, de trânsito e de estacionamento.

O município terá consciência que não é possível dar tolerância de ponto a determinados serviços municipais em dias como estes (ou a atribuí-los tem de, forçosamente, garantir alternativas)? Não é possível aumentar e melhor a ordem pública e a salubridade da cidade? Será normal que (tudo) isto aconteça de forma recorrente e negligente?

Quando se concentra um número (inusitado) de vendedores ambulantes é normal que os resíduos, daí resultantes, sejam em grande número, os recipientes já foram menos, agora são mais, mas continuam a ser insuficientes para a procura.

Perante a mundanidade das ocorrências, deixo aqui algumas questões.

A dimensão das evidências será capaz de perturbar a passividade do município?

Caberá à Irmandade do Senhor Santo Cristo dos Milagres a gestão do espaço público ou será responsabilidade do município acautelar e zelar pelo destino a dar à festa, naquela que é a maior expressão religiosa do Arquipélago?

(Ou) será que esse galardão passou a estar consignado às Grandes Festas do Espírito Santo (com autonomia autárquica)?

A insalubridade de Ponta Delgada constituirá o tão propalado “motor de desenvolvimento dos Açores”, naquela que é divulgada como “a porta de entrada do turismo”? E será este o “novo pilar de desenvolvimento do concelho, da ilha de São Miguel e do arquipélago”?

Esta minha preocupação não tem apenas que ver com o crescimento da actividade turística, nem com os peregrinos que nos visitam, é uma preocupação que me assiste, sobretudo, como residente, e habitante desta cidade, numa situação insustentável, aparentemente, insolúvel e incómoda.

A sua resolução deve passar por uma ampla discussão (pública) e de reflexão por quem tem a incumbência de gerir a vida na cidade.

Não vale a pena ignorar o problema, nem culpabilizar a falta de civismo de uns quantos.

Já estivemos mais longe de afirmar que #aculpaedogoverno.

* Publicado na edição de 14/05/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 16 de maio de 2018

Será que aprendemos a lição?

Um estudo da Organização Mundial de Turismo identifica Portugal como um dos países (desenvolvidos) que mais depende do turismo na contribuição directa para o seu Produto Interno Bruto (PIB). O turismo representa 9% da riqueza nacional, ou o mesmo é dizer, que vale 9 euros em cada 100 gerados pela economia portuguesa.

Após o período conturbado da história recente, o incremento turístico foi recebido como um milagre da multiplicação.

O fenómeno é global e alastrou-se, rapidamente, a todo o território. Os Açores não são excepção. Em particular, Ponta Delgada (e São Miguel).

Após anos ao abandono, assistimos a um crescente retorno do investimento (privado com recurso ao sistema de incentivos regional) ao centro histórico da maior cidade açoriana, com ênfase na restauração e no alojamento local.

Apesar da nossa (reduzida) escala, e da reconhecida diferença da pressão exercida em cidades como Lisboa e Porto, estamos a ser confrontados com os primeiros impactos da intensificação da actividade turística.

Ninguém dúvida da importância económica deste sector, sobretudo, no estímulo da reabilitação urbana e no maior dinamismo da construção civil.

No entanto, se em Lisboa se comparam preços do metro quadrado com Paris, nós, por cá, comparamos Ponta Delgada com a capital portuguesa, com a ressalva que a riqueza instalada não é equiparável.

Um dos aspectos mais visíveis, deste fenómeno, são os preços disponíveis para aquisição e arrendamento, que nos fazem questionar a quem se destinam aqueles imóveis. A prova é que alguns promotores imobiliários reconhecem (publicamente) que a sua carteira de clientes é, por estes dias, constituída por 50% de estrangeiros, com um poder de compra diferenciado e que fazem inflacionar, sobremaneira, o valor de mercado.

O centro histórico de Ponta Delgada está condenado, no futuro imediato, a ser habitado por turistas.

A discussão em torno da descaracterização das cidades, fruto da massificação do turismo, pode não ser (ainda) uma realidade a full-time mas terá (e já tem), inevitavelmente, efeitos na forma como acedemos à habitação em algumas zonas da cidade e da ilha.

Muito recentemente, a Secretaria Regional da Energia, Ambiente e Turismo implementou um registo mensal obrigatório, que visa monitorizar o número de hóspedes e dormidas no alojamento local, passando a fazer parte das estatísticas oficiais.

Mais do que a (importante) recolha de dados, para a monitorização da evolução desta forma de alojamento no sector turístico, considero importante o debate em torno do acesso acessível à habitação, na medida em que assistimos a um mimetismo empresarial em que, tudo e todos, parecem convergir para o mesmo.

E não é tudo bom, há muita oferta pouco qualificada que não dignifica o destino.

A euforia está aí mas importa, rapidamente, que se estabeleça uma regulação concreta que não penalize o investidor (mas o prevaricador do alojamento ilegal), mas cujo licenciamento não pode ser ilimitado e deverá responder a uma necessidade efectiva.

No caso da quebra da actividade turística (e consequentemente, de rendimentos), será que vamos assistir a um coro de indignados à procura de uma intervenção governamental que salve empresários e proprietários?

O passado (recente) é um bom exemplo daquilo que, de futuro, não devemos (ou devíamos) perpetuar.

Será que aprendemos a lição?

* Publicado na edição de 30/04/18 do Açoriano Oriental
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terça-feira, 15 de maio de 2018

Autenticidade

Um dos pontos de paragem (obrigatórios) no roteiro turístico (contemporâneo) são os mercados citadinos, local de confluências várias, onde o viajante procura a autenticidade do local, através da participação num ritual realizado pelos residentes e como forma de enriquecer a sua experiência turística.

Para quem viaja regularmente, esta questão não é uma novidade, é apenas a constatação de um fenómeno em expansão.

O turismo democratizou-se e, por essa via, tenderá a massificar-se, quer queiramos, quer não. É algo que não podemos controlar, mesmo que não seja este o propósito com que nos alinhamos à partida.

A abertura do espaço aéreo (europeu) explica, em larga medida, o fenómeno turístico em destinos que nunca tiveram a oportunidade de crescer em número e em resultados.

Os Açores são (apenas) mais um exemplo de regiões, e cidades de pequena e média dimensão, que tiveram, de um dia para o outro, de se adaptar às novas contingências.

Considero que um desafio para viajantes e destinos passa hoje, inexoravelmente, por contrariar, dentro daquilo que é possível, a experiência massificada e indiferenciada, em que acabamos por ver, e degustar, as mesmas coisas, seja em que latitude for, na qual a ‘memorabilia’ acaba por ser idêntica para deixar de ser autêntica.

Pode parecer exagero mas devemos colocar as coisas em perspectiva, colocando de parte o número de camas, os proveitos da hotelaria, o número de passageiros desembarcados (por mar e pelo ar), focando as nossas atenções nos conteúdos (e serviços) que temos para oferecer.

A qualificação da oferta (da experiência turística Açores) não se pode distanciar da realidade e do quotidiano dos residentes, não podemos querer transformar estas ilhas num parque de diversões em formato radical, em que a natureza é servida como uma experiência limite, apenas, pelo facto, da sua mera contemplação ter passado a ser considerada: boring.

Como já aqui escrevi, e como referido numa das muitas palestras a que tenho assistido sobre este tema, uma das nossas vantagens é não ser identificados como um destino turístico, na medida em que em todos os destinos (consolidados) o pacote turístico já está formatado e customizado ao perfil do visitante.

Esta actividade é importante para a consolidação da retoma económica do arquipélago mas não deve ser a única (há que ultrapassar a ideia de ciclos económicos assentes na monocultura), sobretudo devido à fragilidade e riscos que a prossecução deste sector acarreta, em que qualquer oscilação, positiva ou negativa, representa, quase sempre, um impacto significativo para a cadeia de valor.

Voltando ao início deste artigo e aos mercados citadinos, como “espaços âncora” (adjectivação vazia de significado mas utilizada até à exaustão) de visitação, quem visita o Mercado da Graça, em Ponta Delgada, é confrontado com um espaço descaracterizado, sem alma e arquitectonicamente desastroso. Quem ainda se lembra do antigo Mercado?

Não sou saudosista mas urge requalificar aquele espaço dotando-o, e posicionando-o, para o que afirmarmos (de)ter em termos turísticos, na sustentabilidade dos produtos que produzimos e não na importação de frutas e legumes (indistintos e de origens diversas e pouco amigas da ideia daquilo que é sustentável) ao turista que vem à procura de autenticidade e que, muito provavelmente, a tem, em melhor qualidade, no seu destino de origem.

Importa não defraudar as expectativas de quem nos visita, sendo que não há promoção que compense a repercussão negativa de uma má experiência turística.

* Publicado na edição de 16/04/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 18 de abril de 2018

Há mais vida (para além do Rallye)

A Monocle é uma publicação de referência mundial, propriedade de um dos fundadores da Wallpaper, descrita, editorialmente, como um objecto entre a Foreign Policy e a Vanity Fair.

O número 57, publicado em outubro de 2012, continha, para surpresa, confesso, um artigo sobre os Açores, um local, segundo o jornalista, no “middle of nowhere”.

Hoje esta data parece longínqua, pois o clima económico, tal como estava, alterou-se significativamente, em que estes anos de alguma obscuridade, pela ostensibilidade provocada pela crise, transformaram o recente crescimento turístico num antidepressivo para as almas descrentes.

Um dos aspectos que mais me chamaram a atenção, para além de alguns comentários humorados, foi a abordagem pouco ortodoxa em relação ao desenvolvimento das ilhas, no qual são identificadas dez áreas de actuação (e de investimento futuro), a saber: a localização geográfica nomeada como central, um activo a potenciar, nomeadamente, como ponto de reuniões internacionais, associado a grandes organizações (NATO ou G20, por exemplo); outra solução passaria por uma prisão, uma solução polémica, é certo, mas a ideia de acolher uma Alcatraz do Atlântico por intermédio da implementação de um modelo de inclusão social experimental idêntico ao que é realizado na Noruega (Bastoy Island); um porto e um ponto de observação espacial; a sede de um canal noticioso para o espaço lusófono; uma universidade especializada para as questões da lusofonia; o nosso clima temperado podia permitir a existência de uma reserva e a criação de espécies exóticas; a criação de um ‘hub’ internacional para construção e reparação naval; o desenvolvimento da agricultura biológica e das energias renováveis e um resort de luxo com base na sustentabilidade.

Algumas destas ideias dão dimensão a muitas das nossas capacidades endógenas, atribuindo-lhes o contexto e a dimensão que lhes falta.

Passados estes anos, podemos constatar, felizmente, que algumas delas passaram a ser concretas, sobretudo, em termos ambientais.

A dinâmica económica obtida com o incremento turístico, e com a abertura do espaço aéreo dos Açores, tornaram obsoletas parte destas abordagens.

Saídos de um tempo de crise, esta súbita atractividade tem deixado tudo e todos deslumbrados, sendo que o ilhéu é um alvo fácil de seduzir.

Isto faz-me sempre lembrar o episódio (recorrente) do artista que afirma amar os Açores, esta terra linda, e as suas gentes mas que, no final, só conhece o quarto de hotel e a porta do camarim. O público, por regra, aplaude entusiasticamente.

Por estes dias, o arquipélago é vendido como uma jóia escondida, um animal exótico e um conjunto de outros atributos (ficcionados) para turista ler e que causam, sempre, alguma estranheza para quem aqui habita.

O verdadeiro desenvolvimento económico só terá significado se todas as acções promocionais reverterem, efectivamente, para uma melhoria sustentada da população residente, em termos sociais, culturais e ambientais.

De nada serve afirmar que queremos ser um destino sustentável se depois não construímos todos, sem excepção, de forma transversal, as bases para que tal possa acontecer.

E parte desta sustentabilidade passa por conseguirmos crescer como sociedade de forma equilibrada e não inflacionada por títulos, selos ou artigos na impressa nacional ou num teaser publicitário de um canal desportivo.

O sucesso dos Açores está na diferenciação das suas particularidades e nunca na proliferação de pacotes de animação massificada, dos empreendimentos aos serviços, na medida em que temos de conseguir promover o que outros destinos (já) não têm.

Este elemento surpresa está na afirmação da nossa escala e não em fazer do arquipélago uma coisa que ele não é.

É necessário ter presente que, temos de responder às elevadas expectativas dos visitantes, o retorno e o reflexo de uma má experiência provoca muito mais danos do que aqueles que possamos neutralizar pela melhor promoção do destino que dele se possa fazer.

E para que haja sustentabilidade, tem de existir um projecto (e um compromisso colectivo) a médio e longo prazo.

O festival Tremor é um bom exemplo do caminho que há a fazer. E a prova de que há mais vida para além do Rallye.

* Publicado na edição de 26/03/18 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 6 de abril de 2018

Napperon *

Ponta Delgada definiu como objectivo final do seu Plano Estratégico de Desenvolvimento ser Capital Europeia da Cultura em 2027 ou, no mínimo, realizar uma candidatura para sê-lo.

Três anos passados do anúncio desta aspiração, não encontro nada que me indique o que está a ser preparado para que tal aconteça.

A Cultura é quase sempre (des)considerada ou tida como uma coisa menor, desenvolvida por uns malandros subsidiodependentes com tempo livre e nada para fazer.

O tempo passou mas o preconceito mantém-se. E nestes dias, de maior constrangimento financeiro, ganhou nova força. Infelizmente, este discurso não escolhe ideologia e circula (abundantemente) em muitos dos corredores do poder.

No entanto, existem excepções mas há sempre quem configure a Cultura como um utilitário, nem que seja pelo lado figurativo ou simbólico na prateleira do adorno institucional.

Neste sentido, é muito provável ser este o entendimento, na aplicabilidade desta opção, através da qual podemos almejar cumprir com a métrica europeia apenas com a teoria económica, sem a capacitação da população em termos educacionais e culturais.

A economia ignora a realidade (social) para apenas se fixar no output.

A falta de ambição mina e define muito daquilo que somos.

Em sentido oposto, o excesso de ambição, o facilitismo ou até a irrelevância e ignorância da acção política, definha a estratégia de desenvolvimento para uma cidade ou até mesmo para uma região.

Não há uma ideia agregadora e com objectivos concretos (a médio e a longo prazo) quanto a este desígnio.

É isto que cogito acerca do vazio desta intenção (a de candidatar Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura).

Em sentido contrário estão outras cidades nacionais candidatas ao mesmo título, a saber: Coimbra, Aveiro, Guarda, Leiria e Viseu, na região Centro, ou Braga e Viana do Castelo, no Norte, Cascais e Oeiras, na área de Lisboa, e Évora e Faro, no Sul do país.

Ponta Delgada não figura em nenhuma pesquisa sobre o tema.

Os concursos para a atribuição do título de Capital Europeia da Cultura começam seis anos antes, sendo que na passada semana ficamos a saber que a Guarda apresentou o grupo de trabalho, que ficará responsável pelo processo de candidatura a apresentar em 2021.

Por cá, quando é que perspectivamos iniciar este processo? Ou este objectivo não era para levar a sério? Se assim é, que sentido é que faz designar este propósito se não é nossa intenção levá-lo até ao fim? Não será este um dos problemas do descrédito em torno da política e dos políticos, o real comprometimento para com os seus concidadãos ou naquilo que se entende por uma política de verdade?

A meados da década passada, a par com um grupo de personalidades, acreditei ser possível candidatar os Açores a Região Cultural Europeia, e não apenas com a participação de uma ou mais cidades, mas com o todo regional, com todas as suas potencialidades e fragilidades, na medida em que a realidade insular, da ilha ou do concelho, é muito díspar e está longe de ser aquela que Ponta Delgada, por exemplo, representa.

Nesta linha de pensamento, o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, referiu, por estes dias, que neste tipo de projetos “sobretudo numa Europa que é cada vez mais uma Europa das regiões”, onde “as regiões são priorizadas, em termos de desenvolvimento”, faz todo o sentido “pensar-se numa escala regional”.

Contrariamente a tudo o que se passa, continuamos a agir de forma individualizada e pouco estruturada.

E para que conste, a Cultura não é um napperon, o investimento (continuado) neste sector representa desenvolvimento e progresso.

Importa reafirmá-lo, sem pudor.

* Título original: A Cultura não é um napperon


* Publicado na edição de 19/03/18 do Açoriano Oriental
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sábado, 24 de março de 2018

Pequenos gestos

Não tenho por hábito utilizar este espaço (público) em benefício de causa própria. Contudo, há assuntos que extravasam o mero âmbito da agenda (cultural) e servem, espero, como alerta, para derrubar barreiras (invisíveis) ou para que, ao menos, se fale deles.

Tema(s) incómodo(s) que a ilha (nós todos, entenda-se) não assume e para os quais reserva uma enorme parcimónia, conservando alguma da indiferença que caracteriza as sociedades pós-modernas (ou aquilo a que convencionou designar da hiper-realidade).

Vem isto a propósito da exibição do documentário “I Don’t Belong Here” de Paulo Abreu, construído a partir de uma peça de teatro com o mesmo nome, da autoria de Dinarte Branco e Nuno Costa Santos, concebida a partir das experiências pessoais dos próprios intérpretes que, oriundos dos EUA e do Canadá, são deportados para os Açores.

Esta peça conseguiu um feito inédito, colocou não actores em palco, partilhando as suas histórias de vida, com uma determinação e uma força que os próprios desconheciam (e que produtores e público testemunharam).

E não estamos a falar de exemplos de sucesso, falamos de percursos familiares disfuncionais, desestruturados, violentos e plenos de dependências.

A coragem destes indivíduos (deportados), no assumir um lado menos esplendoroso da sua existência, foi captado pelo realizador durante um período de cerca de dois anos, gerando cerca de 240 horas de material filmado que, após editado, deu origem a um filme com 75 minutos, estreado na edição de 2017 do Festival Doclisboa, no qual obteve o Prémio Escolas/Prémio ETIC para Melhor Filme da Competição Portuguesa.

Este projecto surgiu de um desafio lançado a Dinarte Branco pelo Observatório dos Luso-Descendentes e contou com o apoio de inúmeras entidades, e de muitas pessoas, sem as quais esta empreitada não teria chegado ao fim.

O processo de produção da peça foi muito difícil, não só em termos humanos e de logística, mas também, em termos de montagem financeira, a qual obteve o apoio decisivo da co-produção da Rede 5 sentidos, uma estrutura informal de programação cultural composta por 11 estruturas culturais, da qual o Teatro Micaelense, faz parte, e que possibilitou a itinerância deste objecto artístico. O qual é, ainda hoje, assumido como referência de boas práticas na produção artística em rede.

Destaco, igualmente, os contributos da Fundação AMI, do Governo dos Açores (Direção Regional das Comunidades e da Cultura), da SATA, do Grupo Bensaude, da Açoreana Seguros e da Associação Novo Dia, sem os quais não teria sido possível financiar esta ideia.

Apesar disto, parte substancial do trabalho associado à conclusão do filme, e de parte significativa do processo preparatório, e do decorrer da peça, é fruto do investimento pessoal de todos os envolvidos, os quais dedicaram a este projecto muito mais do que o mero retorno financeiro, muito espartano, diga-se em abono da verdade.

O subfinanciamento da actividade cultural é um constrangimento anterior à crise, estes tempos de contenção apenas vieram fragilizar, sobremaneira, um sector que resiste, irracionalmente, ao determinismo economicista que dita os dias do presente.

Este projecto é a prova de que é possível acreditar numa sociedade melhor, que podemos todos ultrapassar as dificuldades que nos são impostas e temos, como muito e bem disse Álvaro Borralho, no final da exibição do documentário, de conseguir quebrar com os estigmas paralisantes (e permanentes) associados à realidade do indivíduo deportado.

Esta não é uma tarefa fácil, como se depreenderá, é algo que exige muito do próprio, de alguém que vive num estado de permanente injustiça, pelo facto de ter cumprido com a sua pena e que aqui, no espaço que o acolhe, experiencia uma dupla penalidade, na medida em que se vê coarctado da sua família e do meio que o viu crescer.

A desumanidade associada às leis da emigração faz com que o desânimo, e a descrença, façam parte do dia-a-dia destas pessoas.

Pequenos gestos como este, primeiro a peça de teatro e o filme que se seguiu, são contributos para que a cultura, também ela, funcione, de forma activa, para a transformação social.

Se não acreditasse nisto, não faria o que faço.

* Publicado na edição de 12/03/18 do Açoriano Oriental
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segunda-feira, 12 de março de 2018

Complementaridade(s)

A romaria à Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) faz parte do calendário da estação, sem que se questione, sobremaneira, a participação da região neste certame.

Uma montra nacional, dividida entre uma componente dedicada a profissionais e outra dirigida ao público que acorre ao Parque das Nações, durante o fim-de-semana, na expectativa de aceder às inúmeras provas de produtos regionais (queijos, vinhos e enchidos) ou participar num sorteio para ganhar uma viagem aérea para o destino da moda.

Todos os anos há uma polémica associada à representação açoriana, este ano não foi excepção.

Apesar do sucesso dos anos recentes, os Açores necessitam de se afirmar, de forma consistente, como um destino creditado e não apenas como uma moda passageira.

O arquipélago é, ainda, um ilustre desconhecido. Isto constitui, no meu entender, uma vantagem. Mas para tal, é necessário garantir a promoção do destino como um todo, e não de nove partes distintas, como alguns parecem querer acreditar.

Ao contrário de outras regiões, os Açores estiveram (re)partidos no complexo da Feira Internacional de Lisboa (FIL) pelo pavilhão 1, onde esteve o stand oficial dos Açores (organizado pela Associação Turismo dos Açores - ATA), e pelo pavilhão 2, onde estiveram a Associação de Municípios da Ilha de São Miguel (AMISM), a Associação de Municípios do Triângulo (Faial, Pico e São Jorge) e os municípios das Flores e Corvo.

Esta luta de protagonistas (e de protagonismo) dita que não importa a (pretensa) escassez de recursos, sendo que a racionalidade dos gastos, neste como em outros casos, não é tida em linha de conta, inclusive, na eficácia associada a uma acção promocional concertada, em que, infelizmente, todos lutam, apenas, por um lugar na fotografia.

Relativamente a esta questão, a dispersão verificada nesta representação, os responsáveis pela promoção turística falam de um “retrocesso”.

Contudo, convém não esquecer que esta proliferação de meios não se extingue apenas na presença na BTL, ela também se verifica nos múltiplos canais (sobretudo online) em que cada qual tenta promover a sua região, seja ela uma ilha (Terceira) ou grupo de ilhas (Triângulo).

Paralelamente à realização da BTL, em que os intervenientes parecem querer investir todas as fichas num única e determinada aposta, parece-me contraproducente que, à semelhança da inexistência de um verdadeiro sentido de união em torno da promoção do destino, todos os eventos e iniciativas de animação turística estejam concentrados na época alta, período que já está, antecipadamente, vendido e que já não dá resposta à procura que, actualmente, tem.

Na ausência de uma estratégia articulada, cada município promove, até à exaustão, as suas festas concelhias e os seus “eventos âncora”, ignorando, na maioria dos casos, que o público-alvo, destas iniciativas, se esgota localmente e não constitui um cartaz suficientemente apelativo, nem seja a razão primordial pela qual os turistas se deslocam aos Açores.

Como é óbvio, existem honrosas excepções, mas continuamos a negligenciar a sazonalidade (novembro a março), pelo que, complementarmente à natureza, disponível todo o ano, é necessário investir nas actividades dentro de portas, nomeadamente, através de uma melhor dinamização da multiplicidade de espaços culturais (ao nosso dispor).

Para tal não basta edificá-los, importa dotar-lhes de meios (sobretudo financeiros), para que os mesmos possam desenvolver, capazmente, a missão que lhes foi confiada. A este propósito destacaria a comunicação da professora Susana Goulart Costa, na conferência de abertura dos III Encontros Daniel de Sá, na qual sinalizou a importância que deve ser dada à valorização do património cultural dos Açores.

Outro aspecto a destacar na experiência turística local, é a necessidade de afirmação da nossa identidade, naquilo que nos diferencia e distingue de outros destinos, recusando qualquer tentativa de homogeneização (e carácter indiferenciado) da oferta. Importa ter isto bem presente, no garante de uma actividade económica que queremos afirmar de forma duradoura (e que não tenha somente um carácter transitório).

Essa garantia começa e termina “cá dentro”, só depende de nós e de mais ninguém.

* Publicado na edição de 05/03/18 do Açoriano Oriental
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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Sociedade do espectáculo

Vivemos num tempo em que o espectáculo comanda a vida, a desconfiança pelas instituições passou a ser um ditame e a realidade parece suplantar a ficção.

Do público ao privado, a nossa acção quotidiana é determinada pela necessidade de partilhar o simulacro de uma existência sofismada.

A polissemia das palavras e das representações em actos oficiais, tornados públicos em conferências de impressa, inaugurações e outras cerimónias afins, alimentam as redações e a timeline contínua, sem que haja um grande embaraço perante o perfil anémico dos conteúdos.

Os Açores não são excepção.

O debate sobre a coisa pública não pode, nem se deve esgotar na esfera política.

Algo que acontece vezes sem conta (e de forma recorrente).

A oposição parlamentar reclama pelo peso do sector público na economia regional, sendo que depois apresentam iniciativas que visam, apenas, o reforço (= aumento dos gastos) dos apoios públicos (que tanto criticam).

Os representantes dos empresários reclamam o mesmo, menos estado, menos governo e, paradoxalmente, mais apoios para o desempenho de uma missão que antes era pública.

Ignoramos que parte significativa da prestação de um serviço público não é compaginável com o determinismo da lógica empresarial ou pela implementação (cega) de um modelo de gestão.

Se assim fosse, já teríamos encerrado uma parte significativa destas ilhas e de uma parte substancial dos serviços públicos associados aos transportes, saúde, educação e cultura.

Ao contrário do populismo vigente, persecutório da coisa pública, os constrangimentos passados (e presentes) impuseram a racionalidade na gestão do sector público.

Os que defendem um estado melhor (= menos), a transparência das contas públicas e o combate à corrupção acabam, inevitavelmente, por defender o seu contrário quando confrontados com a lógica imposta.

Esquizofrenia? Ainda não é uma palavra proibida no léxico político mas é uma das que melhor define o actual estado de coisas.

Na actualidade arquipelágica, ficamos a saber que a “smart citie” é aquela que tem uma aplicação para pagar parquímetros e para seguir o percurso percorrido pelo minibus mas que, simultaneamente, é incapaz de tratar (eficazmente) os seus resíduos urbanos e deter uma estratégia concertada relativamente à fluidez do trânsito automóvel (no centro histórico, e não só).

E que o estatuto dos deputados sofreu uma actualização forçada, mesmo antes de uma revisão no regimento da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, na medida em que uma greve de fome passou a ser considerada ‘trabalho político’.

Os dias parecem não convocar à sobriedade.

Mário Vargas Llosa (A Civilização do Espetáculo, Quetzal 2012) reflecte sobre o presente: “Hoje em dia, em todas as sondagens que se fazem sobre a política, uma maioria significativa de cidadãos opina que se trata de uma atividade medíocre e suja, que repele os mais honestos e capazes e recruta sobretudo nulidades e espertalhões que veem nela uma maneira rápida de enriquecer.” E não só.

Independentemente de concordarmos mais ou menos com estas afirmações, as generalizações são perigosas e alguns aspectos menos positivos da vida política têm sido muitas vezes “ampliados de uma maneira exagerada e irresponsável por um jornalismo sensacionalista”.

O bom senso rareia, este é o tempo da “sociedade do espectáculo”.

* Publicado na edição de 26/02/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Sinais

Por estes dias ouvimos, em diversos contextos e vezes sem conta, que “os Açores estão na moda”.

O (recente) aumento do turístico fez esbater a sazonalidade, sendo que esta continua a fazer-se sentir, com intensidade, nestes frios meses de inverno.

Este aumento regenerou o sector da construção civil, um dos que mais sofreu com a crise, o qual, perante o inusitado aumento de obras de reabilitação, reclama por falta de mão-de-obra especializada. Não deixa de ser curioso a ironia que tudo isto comporta.

Neste momento, uma das áreas que mais emprega é a dos serviços associados à actividade turística, seja na restauração, na hotelaria ou na animação.

Afirmamos não querer entrar em euforia(s) mas o que experienciamos é um devir colectivo em torno deste sector, para o qual convergimos em sentido único. O incremento do turismo é, tendencialmente, sazonal e muito concentrado num determinado período do ano. Será muito difícil alterar este estado de coisas. E devemos assumir que há respostas que têm um carácter associado à sazonalidade e que apenas, desta forma, poderão garantir a sua sustentabilidade (palavra que passei a odiar).

Para atenuar esta ocorrência, devemos apostar em eventos distintivos e no turismo de congressos, sendo que aqui a concorrência de outros destinos é muito eficaz (e não vamos lá apenas pelos nossos lindos olhos). Esta opção implica investimento. Não vale a pena escamoteá-lo. Se não o fizermos, serão outros a garanti-lo.

O crescimento turístico tem uma expressão mais acentuada em São Miguel e, de forma mais desigual, nas restantes ilhas dos Açores. Com destaque, permitam-me dizê-lo, para a ilha do Pico que se afirma a cada ano que passa, alicerçada no seu amplo território e numa enorme riqueza patrimonial natural/cultural que reforça a sua singularidade.

Cada ilha é uma ilha, é um erro querer promovê-las de forma igual. E é um erro querer que sejam todas iguais, quando não o são. A começar pelas gentes que as habitam e pela forma como expressam a sua matriz identitária (que embora comum, é distinta).

A riqueza deste arquipélago, já o referi por diversas vezes, está aqui, nesta diversidade.

Para tal importa respeitá-la, a começar por todos (nós) e, em particular, por quem tem o dever de nos representar, na defesa, intransigente, do bem comum.

O fantasioso conceito de “desenvolvimento harmónico” não significa o mesmo para todas as ilhas, tem de ser adaptado à realidade (de cada uma delas).

Viver em Ponta Delgada, nunca será o mesmo que habitar Santa Cruz da Graciosa. Afirmar o seu contrário é querer, deliberadamente, ludibriar o (seu) próximo.

O desenvolvimento (presente e futuro) do arquipélago deverá basear-se no equilíbrio do investimento público, baseado nas suas necessidades reais e não pela criação de distopias com carácter ilusório (incapazes de responder a anseios reais e de efeito imediato).

Mas afinal que “moda” é esta?

Em entrevista ao Correio dos Açores (31.01.18), o fotógrafo Daniel Blaufuks (que tem patente a exposição “O Monte dos Vendavais” na Galeria Fonseca Macedo) sinaliza a voragem deste fenómeno: «A paisagem e a vegetação aqui são incríveis (…), assusta-me que as viagens low cost não só venham trazer mais pessoas, que trazem, mas que tragam também um progresso low cost. Se olhar para Lisboa, que é o que me está mais próximo, essa transformação é terrível e está a descaracterizar completamente uma cidade que tinha uma cultura fortíssima. (…) Tenho pouca esperança e tenho medo que isso em São Miguel também aconteça. E já se vêem sinais disso. Acho que isso é triste porque o que estamos a visitar é uma imagem. (…) O turismo em que todos participamos é o problema porque tem o seu lado económico bom, sem dúvida, mas é avassalador como um exército de ocupação.»

Opiniões como esta são, comumente, desvalorizadas e encaradas como fatalistas (e inimigas do “progresso”).

Saibamos ler os sinais (de que fala o artista).

* Publicado na edição de 05/02/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Um símbolo de resistência

Num período de profundas mutações nos hábitos de consumo de bens culturais e de lazer, as livrarias (tradicionais e independentes) lutam de forma desigual pela afirmação da sua cota de mercado, o qual não tem em linha de conta a diferenciação da prateleira mas o valor do desconto.

Isto numa semana em que ficamos a saber que encerrou mais uma livraria histórica em Lisboa, a Aillaud & Lellos, no Chiado.

Esta circunstância teve inúmeras repercussões e levou, inclusive, a uma chamada de atenção da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) para a necessidade de implementação de medidas de apoio (urgente) às livrarias ameaçadas de extinção, recomendando a análise dos mecanismos de apoio vigentes em França, exemplo maior nas políticas de difusão do livro.

Nos Açores, o número de livrarias é reduzido e há ilhas que não as têm. Por regra, o acesso ao livro é possível através das bibliotecas públicas (governamentais, municipais ou escolares), de outros espaços comerciais cuja vocação primordial não é o livro e, num número cada vez mais significativo, pela aquisição online.

Felizmente, ainda, existem espaços que mantêm a sua actividade de forma resiliente. Um dos melhores exemplos, entre nós, é a Livraria Solmar que, complementarmente, ao usual lançamento de livros com autores regionais e nacionais, mantém a organização de feiras temáticas e de iniciativas como a dos ‘Livros do Ano’, cujo principal objetivo é dar a conhecer os livros que constituíram a preferência dos leitores (convidados).

E aqui faço uma declaração de interesses, na medida em que fui um dos convidados da edição deste ano.

Tenho uma relação de amizade para com os seus proprietários, sou um frequentador diário da livraria, um espaço de encontros, de tertúlia improvisada, de conversas distendidas, num tempo dado a pressa(s).

A livraria é, igualmente, um campo de ansiedade e contenção, na medida em que ao olhar para as propostas alinhadas na prateleira, no gosto em desfolhar as páginas à minha frente e sentir o cheiro do papel, sei que não vou conseguir ler tudo o que (já) tenho (até final da minha vida).

Compro mais do que leio, é quase compulsivo, gosto de livros e, em Portugal, as edições estão melhores: nas traduções, na impressão, no design e no papel.
A humidade das ilhas deixa (na maioria dos casos) tudo a perder.

Devia ler mais mas, se pensar bem nisso, nunca li tanto como agora. O dia é preenchido a ler, de forma fragmentada (e acelerada).

Este é um fenómeno transversal a (quase) tudo o que fazemos, pessoal e profissionalmente.

O nosso consumo é realizado na diagonal, em formato descartável e de bolso. Vivemos um período de enormes transformações tecnológicas (que ainda só agora começaram) e que ditam (inconscientemente) a forma como nos correlacionámos, por exemplo, com o cinema, a música e o livro.

Passamos do disco, para a faixa e para a playlist do Spotify.

O cinema (em Ponta Delgada é um duplo desafio) passou para a BOX (oficial e pirateada) e as estrelas cinematográficas estão, preferencialmente, na série televisiva.

O ponto de encontro dos amigos passou a ser um grupo no Facebook.

E o livro dá muitas vezes lugar ao artigo na revista, ao jornal ou ao post.

Afirmar o (pretenso) cosmopolitismo de Ponta Delgada passa por olhar a singularidade de espaços como este, pela promoção (consequente) de políticas de apoio à difusão do livro (e da leitura) e pelo enquadramento de uma linha de apoios públicos a esta actividade (que é cada vez menos um negócio e devia ser entendida como um serviço público).

A livraria (Solmar e muitas outras suas congéneres) é, hoje, um símbolo de resistência à voragem do tempo (e do mercado).

* Publicado na edição de 22/01/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Ignomínia

Nos Açores, continua a ser necessário defender o investimento (incondicional) na Cultura, na criação cultural e na consolidação de meios físicos e humanos para a sua realização.

O populismo é epidémico, qualquer opinião que veicule o ‘desperdício’ de recursos públicos em prol da acção cultural, por regra, colhe muitos aplausos, muitos ‘likes’ e uma adjectivação menos abonatória para quem vive e trabalha no meio artístico.

Considero que o desconhecimento já foi maior mas continua a existir uma enorme depreciação pelas áreas artísticas.

O cenário é antigo, existem melhorias mas, ocasionalmente, são veiculadas um conjunto de preconceitos ou considerações avulsas, sem rigor, de quem desconhece o que se fez e o que se anda a fazer.

A ideia de que a cultura, ou a fruição cultural, tem apenas como destinatário uma suposta elite, é uma presunção perigosa que faz aumentar o estigma sobre este sector.

Os círculos de públicos associados à fruição cultural tendem a estender-se mas continuam, é certo, a ser preenchidos por uma minoria da população, sendo que o trabalho das instituições culturais passa por fazer chegar a cultura e um cada vez maior número de pessoas.

E não nos iludamos, a Cultura continuará a ser, se assim a considerarmos, um ‘privilégio’ de alguns. O desejo de futuro é permitir que este processo se dilua e os diferentes públicos possam encontrar o seu espaço. E ele existe.

Este trabalho não se baliza por uma fórmula de excel, nem se realiza de um dia para o outro.

Esta acção exige um trabalho contínuo, objectivos a curto e médio prazo e de ser consistente e, sobretudo, consequente.

Não sou adepto do fazer por fazer, os resultados são importantes, não menosprezo os quantitativos, são eles que ditam muito do que hoje fazemos, mas valorizo os quantitativos, mais difíceis de medir e de defender, num tempo em que tudo é mensurável.

A acção cultural nas áreas ditas tradicionais (música erudita, artes performativas, por exemplo) não é compaginável com a produção em série. Esta foi uma ideia veiculada nestes anos de crise, numa associação às indústrias culturais e criativas, facto que não corresponde ao que realmente se passa ou cujo papel não é, nem pode, ser confundido.

A Cultura tem de ser entendida como essencial, a par de outros sectores vitais (Educação), para o crescimento (desenvolvimento) da nossa comunidade, pelo que não pode ser medida, apenas, em termos economicistas. Fazê-lo é redutor.

O problema é que continuam a existir vozes que tendem a menosprezar o trabalho realizado pela comunidade artística, ignorando que este trabalho só é tornado possível, na sua esmagadora maioria, pela pulsão de quem ama o que faz, sem dele retirar grandes rendimentos e investindo muito do seu tempo pessoal (e familiar).

Olhar a Cultura apenas como uma forma de deleite de uma imensa minoria, é desconhecer a realidade que o rodeia e o intenso percurso percorrido por artistas e instituições.

No espaço público, continuamos a ser muito poucos na defesa da Cultura e do necessário investimento para a sua prossecução.

É tempo de repudiarmos toda e qualquer opinião mesquinha e falaciosa em torno do universo cultural.

O combate às desigualdades sociais também se faz por defender o acesso ilimitado aos bens culturais.

A inclusão (social e cultural) não se faz por exclusão de partes.

Defender o seu contrário, é uma ignomínia.

* Publicado na edição de 15/01/18 do Açoriano Oriental
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